Pela última vez mirar
a geometria das pedras da muralha.
Nossos cavalos morreram
de misteriosas moléstias
e os lanceiros mais precisos
sucumbiram à lua cheia.
Pela última vez transitar
nossa nobreza precária
entre os túneis e incógnitas
do castelo condenado.
Vazio de labirintos
onde guardamos quimeras:
armistícios
fósforos queimados
ácidos inofensivos
secretárias eletrônicas
cartões de ponto, de visitas,
de crédito, de desculpas,
palavras cruzadas
contracheques
retratos de terno, sem risos,
frases feitas
calendários.
Nossos olhos se empanturram
de descobrir o já visto
nas muralhas que hoje são
um prenúncio de seu pó.
As pedras criaram sentido:
o itinerário escolhido
tracejou o fora e o dentro
(mesmo o rei que agora temos
só o foi por essas pedras).
Pela última vez repetir
tantos gestos familiares:
descobrir no escuro a tocha presa na argola,
embebê-la no que resta do alcatrão,
alumiar a gruta do tesouro
que o guardador das chaves escavou.
Lá fora é noite sem lua,
sem tochas, sem referências.
As muralhas conformaram,
no correr dos anos calmos,
essas camadas de limo,
esse ar de consistência.
E agora, que as vemos frágeis:
A multidão, lá fora, invade a noite
para gritar um nome tão secreto,
tão diverso dos nossos, tão mais pleno,
que rasgará uma fenda sob as pedras
feito dente na fruta, feito afronta,
irreversível feito sem remédio.
E ficaremos tímidos e expostos,
a esperar a faca na garganta.
Sacerdotisas do templo,
o que foi feito do incenso?
E as rezas, o fogo aceso?
Ontem falavam das luzes
e agora sentimos frio.
E os escribas, sábios da corte,
o que buscam no subterrâneo?
Por que usam o livro grosso
dos reais regulamentos
para deter a chegada
dos lanceiros do inimigo?
Somos os filhos da muralha
e por ela nos tornamos
magistrados, sacerdotes,
sábios da corte, alquimistas,
mas nada sabemos de fórmulas
que valham além dos limites
da cápsula de pedra onde vivemos.
É por isso que em torno procuramos
e só vultos escuros percebemos
de bárbaros que chegam, além-olhar,
de muito longe, de lugar nenhum.
Agora, que a muralha é uma pilhéria,
viramos coisa assim, desajustada,
sem rei, sem rito, sem limite.
Só resta esperar que venha a aurora
e o inimigo, à luz, receba um nome.
Pela última vez fitar o rei.
No amanhecer, sem rei, seremos donos
de um império sequer adivinhado
que o entrechoque de ais e desesperos
recorta já, nas sombras dessa noite,
e apenas se vislumbra na retina
do bárbaro que chega, libertário.
CRÔNICA DO TEMPO DE GUERRA
À espera da guerra • Navegante nórdico • Naufrágio
Campos catalaúnicos • O guerreiro reflete enquanto marcha
Crônica do cerco e destruição • Noite no deserto
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A última batalha se desenha • O nome